E.E PROF.CARLOS PASQUALE
PROFESSOR: LEANDRO
DISCIPLINA: LÍNGUA PORTUGUESA TURMAS:8ºA,8ºB
e 8ºC
DATA:14/05/2020
TEMA: LEITURA E INTERPRETAÇÃO DO CONTO FANTÁSTICO DE EDGAR ALLAN POE
TÍTULO: A QUEDA DA CASA DE USHER
Durante todo aquele triste, escuro e
silencioso dia outonal, com o céu encoberto por nuvens baixas e opressivas,
estive percorrendo sozinho, a cavalo, uma região rural singularmente deserta,
até que enfim avistei, com as primeiras sombras da noite, a melancólica Casa de
Usher. Não sei por quê, mas, assim que entrevi a construção, um sentimento de
intolerável tristeza apoderou-se de meu espírito. Digo intolerável porque essa
impressão não era suavizada por qualquer sensação meio prazenteira, porque
poética, com que a mente geralmente recebe até mesmo as mais sombrias imagens
naturais de desolação e de terror.
Observei a paisagem à minha frente: a
casa simples e a simplicidade do aspecto da propriedade, as paredes frias, as
janelas semelhando órbitas vazias, os poucos canteiros com ervas daninhas e
alguns troncos esbranquiçados de árvores apodrecidas ? e senti na alma uma
depressão profunda que não posso comparar a nenhuma sensação terrena senão ao
que experimenta, ao despertar, o viciado em ópio: o amargo retorno à vida
cotidiana, o terrível descair de um véu. Havia um frio, uma prostração, uma
sensação de repugnância, uma irrecuperável aflição de pensamento que nenhum
excitamento da imaginação conseguiria forçar a transformar-se em algo sublime.
Que era, parei para pensar, que era que tanto em perturbava ao contemplar a
Casa de Usher? Era um mistério completamente insolúvel, e eu não conseguia
controlar as sombrias imagens que me enchiam a cabeça enquanto refletia isso.
Fui forçado a socorrer-me da conclusão nada satisfatória de que existem, sem
dúvida, combinações de objetos naturais muito simples, que têm o poder de nos
afetar assim, embora a análise desse poder se situe em considerações além de
nossa perspicácia. Era possível, pensei, que um mero arranjo diferente nos
pormenores da cena, dos detalhes do quadro, bastasse para modificar, ou talvez,
parar suprimir sua capacidade de provocar impressões aflitivas. Com essa idéia
na cabeça, guiei o cavalo até a margem íngreme de um fosso negro e sinistro
cujas águas paradas refulgiam junto a casa e contemplei, com um arrepio ainda
mais forte do que antes, a imagem invertida e modificada dos arbusto cinzentos,
dos lívidos troncos de árvores e das janelas semelhantes a órbitas vazias.
Apesar disso, era nessa desolada mansão
que eu tencionava passar algumas semanas. O proprietário, Roderick Usher, havia
sido um de meus joviais amigos de infância, mas muitos anos tinham se passado
desde o nosso último encontro. Uma carta, no entanto, que me chegara
recentemente numa parte distante do país? uma carta dele? exigia pela
insistência de seu teor resposta pessoal. A caligrafia revela agitação nervosa.
O remetente falava de aguda doença física, de opressiva perturbação mental e do
intenso desejo de me ver, como seu melhor e na verdade único amigo pessoal, com
a intenção de lograr, pela alegria de minha companhia, algum alívio para sua
doença. A maneira pela qual tudo isso e muito mais coisas foram ditas e o
manifesto estado de espírito expresso no pedido impediram-me qualquer hesitação
e por esse motivo obedeci na mesma hora ao que ainda considerava como um
convite muito estranho.
Apesar de, quando crianças, termos sido
companheiros íntimos, eu na verdade conhecia pouco meu amigo. Sua reserva
sempre tinha sido excessiva e habitual. Eu sabia, no entanto, que sua família,
muito antiga, distinguia-se havia muito tempo pela peculiar sensibilidade de
temperamento, demonstrada ao longo de muitos séculos em notáveis obras de arte
e que ultimamente se manifestava em repetidos atos de generosa e discreta
caridade e também na apaixonada devoção pela complexidade da ciência musical,
talvez ainda mais do que por suas belezas naturais e fáceis de reconhecer.
Fiquei sabendo também de um fato incrível: o tronco da linhagem dos Usher,
embora tão antiga, nunca tinha produzido qualquer ramo duradouro. Em outras
palavras, a família se perpetuara apenas em linha direta e assim continuava,
com variações bem poucos importantes e temporárias. Era essa deficiência,
pensava eu, enquanto repassava em pensamento a perfeita harmonia entre o
aspecto da propriedade e o caráter de seus moradores, imaginando a possível
influência que aquela podia ter exercido, ao longo dos séculos, sobre estes ?
era essa deficiência, talvez, de um ramo colateral e a conseqüente transmissão
direta, de pai para filho, do patrimônio e do nome da família que haviam ao
longo dos tempos identificado ambas de tal modo que fundiram o título original
da propriedade na estranha e equívoca designação de Casa de Usher ? designação
que, na mente dos camponeses que a utilizavam, parecia servir tanto para a
família quanto para a mansão da família.
Eu disse que o único efeito da minha
experiência um tanto infantil de olhar para o fosso havia sido aprofundar
aquela primeira impressão. Sem dúvida, quando tomei consciência do rápido
aumento de minha superstição (por que não usar esse termo?), isso serviu
principalmente para intensificar o próprio aumento. Tal é, sei disso há muito
tempo, a lei paradoxal de todos os sentimentos fundados no terror. E pode ter
sido por essa única razão que, ao levantar os olhos de sua imagem no fosso para
a própria mansão, surgiu-me na mente uma estranha visão ? tão estranha, de
fato, que só a menciono para mostrar a intensa força das sensações que me
sufocavam. Minha imaginação mostrava-se tão excitada que realmente acreditei
que em volta da mansão e da propriedade pairava uma atmosfera especial, própria
do lugar e de seus arredores, atmosfera que não se relacionava como o ar do
céu, emanando antes das árvores apodrecidas, das paredes cinzentas, do fosso
silencioso ? um vapor místico e pestilento, espesso, entorpecido, sutil e
lívido.
Afastando do espírito o que devia ser
um sonho, examinei mais atentamente o aspecto real do edifício. Sua
característica principal parecia ser a extrema antigüidade. Fora grande a
descoloração causada pelos séculos. Minúsculos fungos cobriam todo o exterior,
pendendo dos beirais qual fina e emaranhada teia. Mas nada disso indicava
grande destruição. Nenhum bloco de alvenaria tinha desmoronado, mas parecia
haver um profundo contraste entre o encaixe ainda perfeito das partes e as
péssimas condições de cada pedra. Isso me lembrou muito a enganosa integridade
de antigas peças de madeira que apodreceram por longos anos em algum porão
esquecido, sem serem perturbadas pelo sopro do ar exterior. Afora esse indício
de grande decadência, porém, a construção não mostrava nenhum sinal de falta de
segurança. Talvez o olho de um observador mais atento conseguisse descobrir uma
fenda quase imperceptível que riscava a frente do edifício desde
o telhado, descendo em ziguezague pela parede até mergulhar nas águas turvas do fosso.
o telhado, descendo em ziguezague pela parede até mergulhar nas águas turvas do fosso.
Observando tudo isso, atravessei a
cavalo o curto carreiro que levava até a casa. Um cavalariço levou minha
montaria, e avancei pelo arco gótico do vestíbulo. Um criado de andar furtivo
conduziu-me então, calado, por muitas passagens escuras e tortuosas, até o
gabinete de seu patrão. Muitas das coisas que vi pelo caminho contribuíam, não
sei como, para fortalecer os imprecisos sentimentos de já falei. Os objetos à
minha volta ? os entalhes do forro, as sombrias tapeçarias das paredes, o
negrume de ébano do assoalho e as fantasmagóricas armaduras que retiniam quando
eu passava ? eram coisas com que eu estava, ou devia estar, familiarizado desde
a infância, mas, embora não hesitasse em reconhecê-las como tais, ainda me
espantava ao perceber como eram estranhas as visões que essas imagens tão
comuns produziam em mim. Numa das escadas, cruzei com o médico da família.
Julguei ver em sua fisionomia uma expressão desanimada e perplexa.
Cumprimentou-me agitado e afastou-se. O criado então abriu uma porta e me lev
ou até a presença de seu patrão.
ou até a presença de seu patrão.
Achei-me numa sala muito ampla e alta.
As janelas, compridas, estreitas e pontudas, tinham peitoris tão afastados do
assoalho de carvalho negro que era impossível alcança-los. Fracos raios de luz
avermelhada penetravam pelas vidraças guarnecidas com rótulas, só conseguindo
tornar visíveis os objetos próximos mais volumosos. O Olhar, porém, lutava em
vão para perceber os cantos mais distantes da sala ou os recessos do forro em
abóbada guarnecido com entalhes. Sombrias cortinas pendiam das paredes. O
mobiliário era excessivo, desconfortável, antigo e gasto. Os muitos livros e
instrumentos musicais que jaziam dispersos não conseguiam dar vitalidade alguma
ao ambiente. Senti que respirava uma atmosfera de tristeza. Uma ar de severo,
profundo e irrecuperável desalento pairava sobre as coisas e impregnava a tudo.
Assim que entrei, Usher levantou-se do
sofá onde estava deitado ao comprido e cumprimentou-me com calorosa vivacidade,
na qual havia muito, de inicio julguei, de cordialidade forçada, do esforço
constrangido de um homem de sociedade entediado. Mas, olhando seu rosto,
convenci-me de sua perfeita sinceridade. Sentamos e, por alguns momentos, como
ele não falava nada, fiquei olhando-o com um sentimento misto de piedade e
espanto. Com toda a certeza, nenhum homem jamais se transformara tão
terrivelmente, em período tão curto, quanto Roderick Usher! Só com muita
dificuldade consegui admitir que o homem doentio diante de mim era o mesmo
companheiro de infância. No entanto, suas feições sempre tinham sido notáveis:
tez cadavérica; olhos grandes, líquidos e luminosos, sem comparação; lábios um
tanto finos e muito pálidos, mas de conformação extremamente bela; o nariz, com
delicado desenho hebraico, mas exibindo narinas largas, incomuns nesse tipo; o
queixo finamente delineado, revelando, pela ausência de volume, carência de
energia moral; cabelos mais finos e macios que os fios de uma teia. Todos esses
traços e mais o extraordinário desenvolvimento da fronte combinavam-se num
aspecto difícil de esquecer. E agora, com o mero exagero desses traços e da
expressão que costumavam mostrar, havia tal mudança que cheguei a duvidar de
que era com ele que falava. A cadavérica palidez da pele e o brilho agora
sobrenatural dos olhos, acima de tudo, surpreendiam-me e até me aterravam. O
cabelo sedoso também tinha crescido descuidadamente e como, por causa da
textura muito fina, flutuasse em vez de cair nos lados do rosto, eu não
conseguia, mesmo com esforço, vincular sua expressão fantástica com qualquer
idéia de simples humanidade.
Fiquei abalado ao perceber logo certa
incoerência nas maneiras de meu amigo, certa inconsistência, e logo descobri
que isso se devia a um série de fracos e inúteis esforços para dominar tremor
freqüente, uma excessiva agitação nervosa. Eu estava preparado para encontrar
algo assim, não só por sua carta, mas também pela lembrança de certos traços
juvenis e pelas conclusões deduzidas de seu estado físico e de seu
temperamento. Suas atitudes alternavam da vivacidade ao desânimo. A voz
variava, rapidamente, passando da trêmula indecisão (quando seu ardor parecia
tornar-se profundamente entorpecido) para o tipo de energética concisão, para a
abrupta, pesada, lenta e oca articulação, para a fala arrastada, controlada,
gutural e perfeitamente modulada que se pode observar nos bêbados costumazes e
nos fumadores de ópio irrecuperáveis, durante os períodos mais intensos de
excitação.
Foi assim que ele se referiu ao
objetivo de minha visita, de seu grande desejo de me ver e do alívio que
esperava encontrar em minha companhia. Depois, falou por algum tempo do que
achava da natureza de sua doença. Segundo ele, era um mal de família e de
nascença, para o qual já tinha perdido a esperança de encontrar remédio; mera
perturbação nervosa, disse logo em seguida, que sem dúvida ia passar logo. A
doença se manifestava numa série de sensações antinaturais. Algumas, enquanto
as ia descrevendo, me deixaram interessado e confuso, apesar talvez de que
tenham influído os termos usados e a forma geral da descrição. Ele sofria, e
muito, de doentia exageração dos sentidos: só tolerava o mais ínspido alimento;
não podia usar senão roupas de determinadas texturas; os perfumes de todas as
flores pareciam-lhe sufocantes; até a luz mais suave lhe torturava os olhos e
só os sons especiais dos instrumentos de cordas não lhe provocavam horror.
Compreendi que ele estava escravizado
por uma espécie anormal de terror.
– Vou morrer ? disse ele. ? Devo morrer
nesta loucura lamentável. Assim, assim e de nenhuma outra forma é que vou me
perder. Abomino os fatos do futuro, não em si mesmos, mas por seus resultados.
Estremeço diante da idéia de qualquer incidente, até mesmo o mais trivial, que
possa afetar essa intolerável agitação da alma. Não tenho, na verdade, aversão
pelo perigo, a não ser em seu efeito absoluto: o terror. Neste deplorável
estado de abatimento sinto que mais cedo ou mais tarde chegará um momento em
que vou ter de abandonar ao mesmo tempo a vida e a razão, na luta com o
fantasma sinistro do medo.
Descobri também, aos poucos e através de pistas equívocas fragmentadas,
outro traço singular de seu estado mental. Ele estava acorrentado a certas
impressões supersticiosas quanto à casa em que morava e da qual, por longos
anos, não se aventurava a sair… a uma influência, cuja suposta força foi
narrada em termos vagos demais para reproduzir aqui… influência que alguns
detalhes da matéria e da forma da mansão familiar tinham, às custas de longo
sofrimento, conseguindo exercer sobre seu espírito… efeito físico que as
paredes e torres cinzentas e o sombrio fosso onde elas refletiam tinham acabado
por exercer sobre o moral de sua existência.
Ele admitia, porém, embora com
hesitação, que grande parte do desalento que sofria talvez tivesse origem mais
natural e bem mais palpável: na séria e prolongada doença (na verdade, na morte
evidentemente próxima) de uma irmã adorada, sua única companheira por longos
anos, sua única e última parenta nesta terra.
– A morte dela ? disse ele, com
amargura que nunca esquecerei ? tornará (a ele, fraco e sem esperanças) o
último representante da antiga raça dos Usher.
Enquanto falava, Lady Madeline (pois
era assim que se chamava) passou pela parte mais distante do aposento e, sem
notar minha presença, desapareceu. Olhei-a com profunda surpresa e uma ponta de
medo ? e, no entanto, não encontrava explicação para esses sentimentos. Uma
sensação de estupor me sufocava, enquanto seguia com os olhos seus passos.
Quando uma porta, afinal, se fechou atrás dela, meu olhar procurou instintiva e
ansiosamente o irmão, mas este escondera o rosto nas mãos, e só pude perceber
que uma palidez maior que a normal tinha tomado conta dos dedos magros, pelos
quais escorriam muitas lágrimas emocionadas.
A doença de Lady Madeline vinha
desafiando, por muito tempo, a habilidade dos médicos. Apatia permanente,
progressivo enfraquecimento físico e crises freqüentes, mas passageiras,
caráter parcialmente cataléptico eram o diagnóstico incomum. Até então ela
tinha resistido firmemente contra o avanço da doença, recusando-se a cair de
cama, mas no final da tarde de minha chegada ela sucumbiu (como me contou o
irmão, à noite, com indescritível agitação) ao poder destruidor do mal. E
compreendi que a visão de relance de seu vulto seria provavelmente a última e
que não veria mais a moça, pelo menos com vida.
No decorrer dos dias seguintes, seu
nome não foi mencionado por Usher ou por mim. Durante esse período dediquei-me
vivamente a aliviar a melancolia de meu amigo. Pintávamos e líamos juntos; ou
eu ouvia, como num sonho, as arrebatadas improvisações que ele fazia em sua
eloqüente guitarra. E assim, à medida que aumentava a intimidade que ia me
revelando os recessos mais íntimos de seu espírito, mais amargamente eu
percebia quão inúteis seriam as tentativas de alegrar aquela mente da qual a
escuridão, como uma qualidade inerente e ativa, vertia sobre todos os objetos
do mundo físico e moral um incessante radiação de tristeza.
Ficarão para sempre gravadas em minha
memória as muitas horas solenes que passei a sós como o chefe da Casa de Usher.
Mas nunca conseguiria dar uma idéia do caráter exato dos estudos ou das
ocupações em que ele me envolvia ou me conduzia. Uma idealidade excitada e
altamente desequilibrada lançava um brilho sulfuroso sobre todas as coisas.
Suas longas cantigas fúnebres soarão para sempre em meus ouvidos. Entre outras
coisas, lembro-me dolorosamente de certa estranha alteração e amplificação da
romântica melodia da última valsa de Von Weber. Quanto às pinturas em que
extravasava sua elaborada fantasia e que se metamorfoseavam, pincelada por
pincelada, até atingir uma indefinição que me causava estremecimentos ainda
mais emocionantes, pois eu não sabia por que estremecia ? quanto a essas
pinturas (tão vívidas que até hoje tenho suas imagens diante dos olhos) em vão
me esforçaria para retirar delas apenas uma pequena parte, passível de ser
traduzida por simples palavras escritas. Através da extrema simplicidade e crueza
do desenho, ele retinha e dominava a atenção. Se algum mortal jamais pintou uma
idéia, esse mortal foi Roderick Usher. Para mim, pelo menos, na situação em que
então em encontrava, dessas puras abstrações que o hipocondríaco conseguia
projetar nas suas telas surgia um terror intenso e intolerável, assombro que
nem de longe jamais senti nas fantasias (sem dúvida brilhantes) de Fuseli, mas
ainda assim concretas demais.
Uma das criações fantasmagóricas de meu
amigo em que esse espírito abstrato não era tão rígido pode ser descrita, ainda
que pobremente, em palavras. Era um quadro pequeno, representando o interior de
uma câmara ou túnel imensamente longo e retangular, com paredes baixas, lisas,
brancas e sem qualquer interrupção ou adornos. Certos detalhes do desenho
conseguiam dar muito bem a idéia de que essa escavação ficava a uma extrema
profundidade, abaixo da superfície da terra. Não se via qualquer abertura em
toda a sua vasta extensão nem se percebiam tochas ou qualquer outra fonte de
luz artificial. No entanto, uma torrente de intensos raios jorrava, tudo
banhando num esplendor cadavérico e antinatural.
Falei há pouco do estado mórbido do
nervo auditivo, que tornava intolerável qualquer música para esse sofredor, com
exceção de certos efeitos de instrumentos de cordas. Foram, talvez, os
estreitos limites a que ele se limitava na guitarra que deram origem, em grande
parte, ao caráter fantástico de suas execuções. Mas a fervorosa facilidade de
seus improvisos era inexplicável. Deviam ser e eram, tanto nas notas quanto nas
palavras de suas loucas fantasias (pois ele muitas vezes acompanhava a música
com improvisações verbais rimadas), resultado da intensa e imperturbável
concentração mental de que já falei antes, só observáveis nos momentos de maior
excitação artificial. Lembro-me facilmente das palavras de uma dessas
rapsódias. Fiquei, talvez, tão impressionado quando ele as cantou, porque, na
corrente subjacente ou mística de seu significado, julguei perceber, pela
primeira vez, que Usher tinha plena consciência da instabilidade de sua mente
altiva sobre seu trono. Os versos, intitulados “O Palácio Assombrado”, eram
quase exatamente assim:
I
No mais verde de nosso vales,
Por bons anjos habitado,
Outrora um belo e rico palácio,
Radiante palácio, se erguia.
Nos domínios do rei Pensamento,
Lá estava ele!
Nunca serafim algum abriu as asas
Sobre tão bela obra.
Por bons anjos habitado,
Outrora um belo e rico palácio,
Radiante palácio, se erguia.
Nos domínios do rei Pensamento,
Lá estava ele!
Nunca serafim algum abriu as asas
Sobre tão bela obra.
II
Bandeiras amarelas, gloriosas, douradas,
Em seus telhados flutuavam, ondulando
(Isso, tudo isso, ocorreu nos velhos tempos
De antigamente)
E toda suave brisa que brincava,
Naqueles doces dias,
Pelos muros pálidos e engalanados,
Um sublime perfume desprendia.
Em seus telhados flutuavam, ondulando
(Isso, tudo isso, ocorreu nos velhos tempos
De antigamente)
E toda suave brisa que brincava,
Naqueles doces dias,
Pelos muros pálidos e engalanados,
Um sublime perfume desprendia.
III
Quem passava por esse vale feliz
Por duas janelas luminosas via
Espíritos deslizando, musicais,
Ao som de alaúde bem afinado,
Em volta de um tronco, onde sentava-se
(Porfirogênito (1)!),
Na grandeza de sua glória muito justa,
O senhor desse reinado.
Por duas janelas luminosas via
Espíritos deslizando, musicais,
Ao som de alaúde bem afinado,
Em volta de um tronco, onde sentava-se
(Porfirogênito (1)!),
Na grandeza de sua glória muito justa,
O senhor desse reinado.
IV
Pela bela porta do palácio
Brilhante com pérolas e rubis,
Ia passando, passando, passando,
E sempre mais cintilando,
Uma tropa de Ecos cujo doce dever
Era apenas cantar
Com vozes de insuperável beleza,
A viva sabedoria do rei.
Brilhante com pérolas e rubis,
Ia passando, passando, passando,
E sempre mais cintilando,
Uma tropa de Ecos cujo doce dever
Era apenas cantar
Com vozes de insuperável beleza,
A viva sabedoria do rei.
V
Mas vultos maus, trajados de luto,
Atacaram o alto reino do monarca;
(Ah, choremos, pois nunca mais
O dia vai nascer para ele, o desolado!)
E, em volta do palácio, a glória
Que brilhava e florescia
Não passa agora de mal lembrada história
Dos velhos tempos sepultados.
Atacaram o alto reino do monarca;
(Ah, choremos, pois nunca mais
O dia vai nascer para ele, o desolado!)
E, em volta do palácio, a glória
Que brilhava e florescia
Não passa agora de mal lembrada história
Dos velhos tempos sepultados.
VI
E quem passa agora pelo vale,
Pelas janelas rubras vê
Enormes formas que fantásticas se movem,
Ao som de melodia discordante;
Enquanto isso, como rio terrível,
Pela pálida porta se precipita
Para sempre uma hedionda multidão
Que gargalha, mas não mais sorri.
Pelas janelas rubras vê
Enormes formas que fantásticas se movem,
Ao som de melodia discordante;
Enquanto isso, como rio terrível,
Pela pálida porta se precipita
Para sempre uma hedionda multidão
Que gargalha, mas não mais sorri.
Lembro-me bem de que as sugestões
despertadas pela balada nos levaram a uma linha de pensamento em que se tornou
manifesta uma opinião de Usher, que menciono não tanto por causa de sua
novidade (pois outros homens (2) já pensaram desse modo), mas devido à
insistência com que ele a defendia. Essa opinião, em termo gerais, afirmava que
todos os vegetais têm sensibilidade. Mas, na imaginação desordenada de Usher,
essa idéia tinha assumido caráter ainda mais ousado e chegava, sob certos
aspectos, ao reino das coisa inorgânicas. Não encontro palavras para expressar
toda a extensão, ou melhor, a sincera espontaneidade de sua convicção. Tal
crença, no entanto, relacionava-se (como já insinuei antes) com as pedras
cinzentas da mansão e seus antepassados. As condições para essa sensibilidade
eram realizadas, imaginava ele, no método de colocação das pedras e na ordem
com que tinham sido organizadas, assim como na dos muitos fungos que as cobriam
e nas árvores agonizantes que existiam em volta, mas, acima de tudo, na longa e
imperturbável duração desse arranjo e na sua duplicação nas águas paradas do
fosso. A prova (a prova dessa sensibilidade) podia ser encontrada, dizia ele (e
me assustei ao ouvir tal coisa), na lenta mas inegável condensação de uma
atmosfera que lhes era própria em torno das águas e das paredes. O resultado
podia ser percebido, acrescentou ele, na influência silenciosa, mas
perturbadora e terrível, que vinha moldando havia séculos o destino de sua
família e que fizera dele, como eu podia ver agora, aquilo que ele era. Essas
opiniões dispensam comentário e não farei nenhum.
Nossos livros ? os livros que durante
anos constituíram grande parte da existência mental do doente ? estavam , como
se pode supor, em harmonia absoluta com esse caráter fantasmagórico. Lemos
juntos, atentamente, obras como Vert Vert e a epístola La Chartreuse, de
Gresset; Belphegor, de Maquiavel; Céu e inferno, de Swendenborg; Viagem
subterrânea de Nils Klimm, de Holberg; Quiromancia, de Robert Flud, de Jean
D`Indaginé e de De la Chambre; Jornada às distâncias azuis, de Tieck; e Cidade
do sol, de Campanella. Um dos volumes preferidos era uma pequena edição
in-oitavo do Directorium Inquisitorum, do padre dominicano Eymerico de Gerona;
e havia passagens de Pomponius Mela (3), sobre os velhos sátiros africanos e
mitológicos, sobre os quais Usher era capaz de sonhar durante horas. Seu maior
prazer, no entanto, era a leitura de um raro e curioso livro em gótico
in-quarto, o manual de uma igreja esquecida, as Vigiliae Mortuorum secundum
Chorum Ecclesiae Maguntinae.
Eu não podia deixar de pensar no
estranho ritual descrito nesse li
vro e na sua provável influência sobre o hipocondríaco quando, uma noite, depois de me informar repentinamente que Lady Madeline havia morrido, ele disse que tinha intenção de manter o corpo por quinze dias (antes do enterro definitivo) em uma das muitas câmaras subterrâneas existentes no interior da mansão. A razão profana para essa estranha atitude, no entanto, era tal que não me sentia à vontade para discutir. Como irmão, tinha sido levado a essa resolução (assim me contou ele) por causa da natureza incomum da doença da falecida, de certas perguntas inconvenientes e ansiosas feitas pelos médicos e por causa da localização distante e exposta do jazigo da família. Não posso negar que, ao lembrar do rosto sinistro da pessoa que encontrei na escada no dia em que cheguei àquela casa, não senti nenhum impulso para me opor a uma preocupação que me parecia inofensiva e de forma alguma antinatural.
vro e na sua provável influência sobre o hipocondríaco quando, uma noite, depois de me informar repentinamente que Lady Madeline havia morrido, ele disse que tinha intenção de manter o corpo por quinze dias (antes do enterro definitivo) em uma das muitas câmaras subterrâneas existentes no interior da mansão. A razão profana para essa estranha atitude, no entanto, era tal que não me sentia à vontade para discutir. Como irmão, tinha sido levado a essa resolução (assim me contou ele) por causa da natureza incomum da doença da falecida, de certas perguntas inconvenientes e ansiosas feitas pelos médicos e por causa da localização distante e exposta do jazigo da família. Não posso negar que, ao lembrar do rosto sinistro da pessoa que encontrei na escada no dia em que cheguei àquela casa, não senti nenhum impulso para me opor a uma preocupação que me parecia inofensiva e de forma alguma antinatural.
A pedido de Usher, ajudei-o nos preparativos do sepultamento provisório.
Depois de colocar o corpo no caixão, nós dois, sozinhos, o levamos até o lugar
de descanso. A câmara em que o deixamos (e que estivera fechada por tanto tempo
que nossas tochas, quase apagadas pela atmosfera abafada, não nos permitiram
examinar) era pequena, úmida, sem nenhuma entrada para a luz e situada a grande
profundidade, exatamente debaixo da parte da mansão onde estava o meu quarto de
dormir. Aparentemente, tinha sido usada em remotos tempos feudais para as
piores finalidades de cárcere privado e, mais recentemente, como depósito de
pólvora ou de alguma outra substância altamente inflamável, pois parte do chão
e todo o interior da longa arcada que percorremos para chegar até ali estavam
cuidadosamente revestidos de cobre. A porta, de ferro maciço, tinha sido
igualmente protegida. Quando girava as dobradiças, seu imenso peso fazia um som
incrivelmente agudo e áspero.
Após depositar nossa triste carga sobre cavaletes nesse horrendo lugar,
abrimos parcialmente a tampa do caixão, ainda não parafusada, e olhamos o rosto
da morta. A incrível semelhança entre irmão e irmã me chamou a atenção, e
Usher, adivinhando talvez meus pensamentos, explicou-me num murmúrio que ele e
a falecida eram gêmeos e que afinidades de natureza quase incompreensível
sempre existiram entre eles. Mas nossos olhares não se demoraram muito tempo
sobre a morta, pois era impossível fitá-la sem se perturbar. A enfermidade que
assim levara ao túmulo a jovem senhora tinha deixado, como é normal em todas as
doenças de natureza estritamente cataléptica, um arremedo de coloração no seio
e no rosto e uma sombra de sorriso nos lábios, que é tão terrível na morte.
Recolocamos e parafusamos a tampa do caixão e, fechando a porta de ferro,
voltamos abatidos para os cômodos pouco menos sinistros dos andares superiores
da mansão.
Então, passados alguns dias de amarga
tristeza, ocorreu uma nítida mudança nos sintomas da perturbação mental de meu
amigo. Seu modo de ser habitual desapareceu. Suas ocupações diárias eram
negligenciadas ou esquecidas. Ele vagava a esmo de sala em sala, com passos
apressados e irregulares. A palidez de seu rosto assumiu, se isso é possível,
um tom ainda mais cadavérico, mas a luminosidade de seus olhos dissipou-se
completamente. Não se ouvia mais o tom áspero de sua voz, como às vezes sucedia
antes, e um trêmulo balbucio, como se estivesse tomado de horror extremo,
passou a caracterizar o seu modo de falar. Houve momentos, na verdade, em que
pensei que sua mente sempre agitada estava em luta com algum segredo opressivo,
empenhando-se em reunir coragem para contá-lo. Outras vezes era eu levado a
atribuir tudo aquilo à inexplicável confusão da loucura, pois o via fitar o
vazio durante horas, numa atitude da mais profunda atenção, como se estivesse
ouvindo algum som imaginário. Não era de admirar que seu estado me causasse
terror e me contaminasse. Senti-me aos poucos, inexoravelmente, invadido pela
estranha influência de suas fantásticas mas impressionantes superstições.
Foi especialmente ao me deitar, já
tarde da noite, sete ou oito dias depois de colocarmos o corpo de Lady Madeline
na câmara, que percebi toda a força de tais sentimentos. O sono não se
aproximava de minha cama e as horas ecoavam-se lentamente. Lutei para controlar
o nervosismo que me dominava. Esforcei-me por acreditar que muito, senão tudo o
que estava sentindo, se devia à perturbadora influência da soturna mobília do
aposento, das tapeçarias escuras e esfarrapadas que, movidas pelo sopro de uma
tempestade que se formava, oscilavam de modo irregular nas paredes e roçavam
inquietas pelos adornos do leito. Mas meus esforços foram inúteis. Um tremor incontrolável
aos poucos tomou conta de meu corpo e, afinal, instalou-se sobre meu próprio
coração o íncubo de uma comoção inteiramente infundada. Sacudindo essa sensação
com um arquejo e um sobressalto, ergui-me dos travesseiros e, sondando com o
olhar a escuridão do aposento, prestei atenção e ouvi ? não sei por quê, talvez
por um instinto que me aguçou o espírito ? ruídos baixos e indefinidos que nas
pausas da tempestade, a longos intervalos, vinham não sabia de onde. Dominado
por forte sentimento de horror, inexplicável e por isso mesmo impossível de
suportar, vesti-me rapidamente (pois senti que seria impossível dormir naquela
noite) e tentei livrar-me, caminhando de um lado para outro pelo aposento, do
estado penoso em que me achava.
Logo depois de iniciar as idas e
vindas, um leve ruído de passos numa escada próxima me chamou a atenção. Logo
reconheci que era Usher. No instante seguinte, ele bateu de leve em minha porta
e entrou, trazendo um lampião. Seu rosto estava, como sempre cadavérico, mas
além disso havia uma espécie de riso louco em seus olhos, e, e, seu modo de
proceder, uma histeria evidentemente contida. Seu aspecto me aterrou, mas
qualquer coisa era preferível à solidão por mim suportada durante tanto tempo e
acolhi sua presença com grande alívio.
– E você não o viu? ? perguntou ele de
repente, depois de olhar em volta por alguns momentos, sem silêncio. ? Não o
viu? Mas espere! Você vai ver.
Assim dizendo ? e enquanto protegia
cuidadosamente o lampião ? correu para uma das janelas e a escancarou para a
tempestade.
A impetuosa fúria das rajadas de vento
quase nos levantou do chão. Era na verdade uma noite tempestuosa, mas ainda
assim bela e espantosamente singular no seu terror e perfeição. Aparentemente,
um redemoinho juntara todas as suas forças ao nosso redor pois ocorriam
freqüentes e violentas mudanças na direção do vento, e a extrema densidade das
nuvens (tão baixas que pareciam pesar sobre os torrões da mansão) não nos
impedia de observar a viva velocidade com que deslizavam de todos os pontos,
chocando-se umas contra as outras, sem desaparecer ao longe. Digo que nem mesmo
a sua extrema densidade nos impossibilitava de perceber isto, embora não
pudéssemos vislumbrar a lua ou as estrelas, nem havia ali qualquer clarão de
relâmpagos. Mas tanto a superfície inferior das imensas massas de vapor
agitando como todos os objetos terrenos das proximidades brilhavam, por efeito
de uma luz antinatural que provinha de uma exalação gasosa ligeiramente
luminosa e perfeitamente visível que envolvia toda a mansão como uma mortalha.
– Você não deve… não pode ficar olhando
para isso! ? eu disse, estremecendo, a Usher, enquanto o afastava com leve
violência da janela e o fazia sentar. ? Essas manifestações que tanto perturbam
você são meros fenômenos elétricos, nada incomuns, ou talvez tenham origem nas
exalações malcheirosas do fosso. Vamos fechar esta janela. O ar está gelado e é
perigoso para sua saúde. Eis aqui um de seus romances favoritos. Vou ler para
você, e assim passaremos juntos esta noite terrível.
O volume antigo que peguei era o Mad
Trist (Assembléia do loucos) de Sir Lancelot Canning. Disse que era um dos
favoritos de Usher mais como triste gracejo do que a sério, pois, na verdade,
sua prolixidade vulgar e estéril muito pouco continha que pudesse interessar à
idealidade elevada e espiritual de meu amigo. Era, porém, o único livro à mão ?
e nutri a vaga esperança de que a excitação que então agitava o hipocondríaco
talvez encontrasse algum alívio (pois a história das perturbações mentais está
cheia de anomalias desse tipo), até mesmo nos excessos de imaginação que eu ia
ler. A julgar pelo ar de intensa vivacidade como que ouvia, ou parecia ouvir a
leitura, podia congratular-me pelo êxito de minha tentativa.
E Ethereld, que tinha por natureza
coração audaz e agora se sentia muito forte, graças ao vigor do vinho que havia
bebido, não gastou mais tempo em discutir com o eremita, que em verdade tinha
caráter obstinado e malicioso. Sentindo a chuva nos ombros e temendo que caísse
a tempestade, levantou a maça e, com vários golpes, logo abriu espaço nas
tábuas da porta, para passar a mão com luva de ferro; brandindo-a com firmeza,
quebrou e lascou e despedaçou de tal foram a madeira que o eco desse ruído seco
e oco alarmou toda a floresta.
Ao terminar esta frase, assustei-me e
parei por um momento, pois em parecia (embora logo concluísse que estava sendo
iludido por minha excitada imaginação), me parecia que, de algum ponto remoto
da mansão, chegava indistintamente a meus ouvidos algo que, por sua exata
semelhança, podia ser o eco (apesar de baixo e abafado) do ranger e estalar que
Sir Launcelot descrevia tão detalhadamente. Era, sem dúvida, apenas a
coincidência que me chamava a atenção, pois que, em meio do bater dos caixilhos
das janelas e dos ruídos da tempestade crescente, o som nada tinha, por certo,
que pudesse me interessar ou perturbar. E continuei com a história:
Mas o bom paladino Ethelred, entrando
agora pela porta, ficou dolorosamente enraivecido e surpreendido por não
encontrar nem sinal do malicioso eremita, mas sim, em seu lugar, uma dragão
coberto de escamas, de aparência prodigiosa e com língua de fogo, que guardava
um palácio de ouro com chão de prata. E sobre a muralha pendia um escudo de
bronze reluzente onde estava escrita a legenda:
Quem aqui penetrar, conquistador será;
Quem o dragão matar, o escudo ganhará.
Quem o dragão matar, o escudo ganhará.
E Ethelred levantou a maça e golpeou a
cabeça do dragão, que caiu a seus pés, exalando o pestilento suspiro com um
guincho tão horrível, áspero e penetrante que Ethelred teve de tapar os ouvidos
com as mãos para suportar aquele terrível som, como jamais tinha ouvido antes.
Aqui, outra vez parei abruptamente,
agora com a sensação de tremenda surpresa, pois não podia haver qualquer dúvida
de que, desta vez, ouvi realmente (embora fosse impossível dizer de onde
provinha) um grito ou rangido baixo, aparentemente distante, mas áspero,
prolongado, singularmente agudo e dissonante, a exata reprodução daquilo que
minha fantasia imaginava como o guincho do dragão descrito pelo romancista.
Oprimido, como eu naturalmente estava,
diante dessa Segunda e tão extraordinária coincidência, por mil sensações
conflitantes, nas quais predominavam a perplexidade e o extremo terror,
consegui ainda manter suficiente presença de espírito para não aguçar, com
qualquer observação, a sensibilidade nervosa de meu companheiro. Não tinha
certeza de que ele houvesse percebido os ruídos em questão, embora, sem dúvida,
uma estranha alteração tenha ocorrido nos últimos minutos em seu rosto. Sentado
diante de mim, fez girar pouco a pouco a cadeira até ficar de frente para a
porta do aposento, de forma que eu só podia ver parcialmente seu rosto, apesar
de perceber que seus lábios tremiam, como se estivesse murmurando baixinho.
Pendeu a cabeça, mas eu sabia que não estava adormecido, porque o olho que via
de perfil mantinha-se muito aberto e fixo. O movimento de seu corpo também
desmentia essa idéia, pois oscilava de um lado para o outro com um balanço
suave, embora constante e uniforme. Tendo notado rapidamente tudo isso, voltei
para a narrativa de Sir Launcelot, que continuava assim:
E agora o paladino, tendo escapado à
terrível fúria do dragão e lembrando-se do escudo de bronze e da quebra do
encantamento que sobre ele pesava, afastou a carcaça do caminho e valorosamente
avançou pelo chão de prata do castelo na direção da parede em que pendia o
escudo, o qual, na verdade, não esperou que ele chegasse até perto, caindo-lhe
aos pés sobre o chão prateado, com horrendo e retumbante estrondo.
Nem bem essas palavras me passaram
pelos lábios, ouvi distintamente como se um pesado escudo de bronze de fato
tivesse caído, naquele momento, sobre um chão de prata ? uma reverberação
nítida, surda, metálica e poderosa, apesar de aparentemente abafada.
Inteiramente nervoso, fiquei em pé de um salto, mas o movimento regular de
balanço de Usher não se alterou. Corri para a cadeira diante de si e todo o seu
rosto apresentava rigidez de pedra. Mas, assim que lhe toquei o ombro com a
mão, forte estremecimento sacudiu todo o seu corpo, um sorriso doentio brincou
em seus lábios como se não tivesse consciência de minha presença. Inclinando-me
sobre ele, pude afinal compreender o sentido terrível de suas palavras.
– Não ouve, agora?… Sim, estou ouvindo
e já ouvi antes. Há muitos, muitos, muitos, muitos minutos, muitas horas,
muitos dias, venho ouvindo… e no entanto não tive a coragem… Oh, pobre de mim,
miserável infeliz!… não tive coragem… não tive coragem de falar! Nós a
enterramos viva! Eu não disse que meus sentidos eram aguçados? Agora lhe digo
que ouvi os primeiros movimentos dela no caixão. Ouvi-os… há muitos, muitos
dias… mas não tive coragem… não tive coragem de falar! E agora… esta noite…
Ethelred… ha! há!… o rompimento da porta do eremita e o grito de morte do
dragão e clangor do escudo!… Seria melhor dizer o destroçar do caixão e o
ranger das dobradiças de ferro de sua prisão e sua luta lá dentro das arcadas
de cobre da cripta! Oh, para onde é que vou fugir? Pois ela não vai chegar
agora mesmo? Não está vindo apressadamente para censurar minha sofreguidão? Não
são seus passos que ouço na escada? Não é a batida pesada e horrível de seu
coração que estou ouvindo? Louco! ? e aqui levantou-se, de um salto, furioso, e
berrou cada sílaba, como se estivesse entregando a própria alma nesse esforço ?
Louco! Digo-lhe que ela está agora, atrás da porta!
Como se a energia sobre-humana de suas
palavras produzisse a força de um encantamento, a imensa e antiga porta para a
qual apontava foi abrindo lentamente, nesse instante, suas mandíbulas negras e
pesadas. Havia sido obra do vento furioso ? mas além da porta estava de fato a
figura alta e amortalhada de Lady Madeline de Usher. Havia sangue em suas
vestes brancas e sinais de violenta luta por todo o seu corpo emagrecido. Por
um momento ela permaneceu trêmula e vacilante no umbral. Depois, com um gemido
baixo e queixoso, caiu pesadamente sobre o irmão, e em sua violenta e agora
final agonia. Arrastou-o consigo para o chão, já morto, vítima dos terrores que
tinha previsto.
Fugi aterrorizado daquele quarto e
daquela mansão. A tempestade ainda soprava com toda a fúria lá fora, quando
atravessei o carreiro. De repente fulgurou sobre o caminho uma luz fantástica,
e me virei para ver de onde podia provir luminosidade tão estranha, pois atrás
de mim só havia a vasta casa e suas sombras. A irradiação vinha da lua cheia e
cor de sangue, já baixa no horizonte, e brilhava agora vivamente através
daquela fenda antes quase invisível, à qual já me referi, que descia em
ziguezague do teto até a base do edifício. Enquanto eu a olhava, a fenda foi se
alargando rapidamente… soprou uma feroz rajada de vento… O círculo inteiro do
satélite tornou-se visível aos meus olhos… Meu cérebro vacilou quando vi
aquelas sólidas paredes desmoronarem… ouviu-se um longo e desordenado estrondo,
como o retumbar de mil cataratas… e o fosso fétido e profundo, a meus pés,
fechou-se, tétrica e silenciosamente, sobre os restos da Casa de Usher.
ATIVIDADE DE INTERPRETAÇÃO DE TEXTO
1
O NARRADOR QUER DESPERTAR ALGUMAS SENSAÇÕES NO
LEITOR. QUAIS SENSAÇÕES A CASA DESPERTA EM VOCÊ?
2
COMO O NARRADOR SE SENTE AO VER A CASA DE USHER
E A PAISAGEM AO REDOR DELA? QUE EXPLICAÇÕES ELE DÁ SOBRE ISSO?
3
O QUE VOCÊS ACHAM QUE ACONTECERÁ DENTRO DA CASA?
4
LOCALIZEM A PASSAGEM EM QUE O NARRADOR DESCREVE
A CASA. PARA VOCÊS, O QUE MAIS ESSA DESCRIÇÃO LEMBRA?
5
LOCALIZEM A DESCRIÇÃO DA PAISAGEM EM QUE O
NARRADOR DESCREVE A CASA. PARA VOCÊS, O QUE MAIS ESSA DESCRIÇÃO LEMBRA?
6
QUAL EXPRESSÃO INDICA EM QUE PERÍODO DO DIA O
NARRADOR CHEGOU À CASA DE USHER?
7
VOCÊS ACHAM QUE A ESCOLHA DE APRESENTAR
ACONTECIMENTOS QUE OCORREM ESPECIFICAMENTE NESSE PERÍODO INFLUENCIA OS EFEITOS
DA NARRATIVA SOBRE O LEITOR? POR QUÊ?
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